quinta-feira, 12 de abril de 2007

"está bem abelha"

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Como o meu pai costuma dizer, de onde menos se espera é que não sai nada de jeito, e talvez por isso nunca me entregou um lugar de responsabilidade na empresa. Não se trata de uma empresa grande: é o meu pai, a secretária do meu pai, meia dúzia de operários e eu fabricamos clips, os clips Osório para prender papéis, vendidos em caixas de 150 nas boas casas da especialidade ou seja papelarias de bairro entre o Alto de Santo Amaro e a Ajuda. Os clips pertencem à família há três gerações, a secretária do meu pai entrou para a firma quando a veia da cabeça da minha mãe lhe rebentou e ela está lá na vivenda, muito quietinha na poltrona, com uma manta nos joelhos, a olhar para a gente com um olho morto e o outro meio vivo e a cochichar de vez em quando
- Osório
a única palavra que consegue pronunciar e que mostra bem o seu apego aos clips. Antes da história da veia a minha mãe protegia-me: sempre que eu preenchia mal uma factura e o meu pai vinha do gabinete ralhar comigo
- De onde menos se espera é que não sai nada de jeito
a minha mãe que fazia tudo o que a secretária faz agora menos dar-lhe beijinhos entre portas protestava logo
- Deixa o rapaz sossegado Gustavo que ele nasceu para o saxofone
o meu pai ainda argumentava
- Então que largue os clips e se dedique à Filarmónica
mas amainava a zanga e permitia que eu passasse os sábados e os domingos a tocar pasodobles nos ensaios da Estudantina. Depois a veia saltou, a minha mãe recolheu à poltrona a segredar
- Osório
o meu pai admitiu a secretária que me preveniu ao segundo dia, toda inchada de importância
- Agora a música é outra senhor Tadeu
e de facto pelo barulho que ela fazia no gabinete do meu pai o ritmo tornou-se diferente. O meu pai deu-lhe sociedade nos clips e nomeou-a gerente, tirou-me do escritório e agora trabalho na entrada a abrir a porta e atender telefones. A mim não me rala. A única coisa que me aborrece é não poder trazer o saxofone e ensaiar aqui, por o maestro achar que ando uma oitava acima no Viva Dolores e atrapalhar o meu colega do trombone de varas. Se eu pudesse ter o saxofone na empresa a minha vida mudava: assim que o meu pai desembestasse do seu canto a agitar um papel indignado
- De onde menos se espera é que não sai nada de jeito
eu soprava o Viva Dolores a pensar
- Está bem abelha
e nem sequer o ouvia, a ele e à secretária, a chamarem-se pêssego, a chamarem-se maçãzinha, a chamarem-se outras frutas e a derrubarem caixas de clips no gabinete trancado. Pensava
- Está bem abelha
metia o saxofone à boca e esquecia-me de abrir a porta, esquecia-me de atender os telefones, a apurar o Viva Dolores para não estragar a partitura ao trombone de varas. O meu pai falou anteontem em despedir-me por eu não dar rendimento no serviço. Falou-me que pela primeira vez em três gerações um Osório não tem amor aos clips. Pela primeira vez em três gerações um Osório prefere tangos aos arames. Pela primeira vez em três gerações um Osório nasceu parvo. Que pela primeira vez em três gerações um Osório não merece prender os papéis dos portugueses e que em vista disso passava a minha quota para o nome da dona Vivelinda, a qual para além de ser competente nas facturas ganhou tanta afeição aos clips como se pertencesse à família. Ao contrário do que vocês possam imaginar não me incomodei. O maestro acha que eu já acerto com o Viva Dolores e a minha ideia é agarrar no saxofone, num banquinho de lona e num boné velho, sentar-me no banquinho à entrada da Igreja da Ajuda, pôr o boné, virado ao contrário, no chão, e tocar pasodobles aos domingos de manhã entre duas missas. O cego da concertina, que está lá há seis anos, diz que existem dias de se fazer cem escudos e mais no caso do sacristão não vir perturbar os artistas com o cabo da vassoura. O sacristão não deve ser muito diferente do meu pai e se ele aparecer a ameaçar-me com o pau eu
- Está bem abelha
pego no saxofone, no banco e no boné e mudo a minha arte para a capela de Alcântara. Os artistas em vida é quase sempre assim, e o Bach por exemplo deve ter apanhado imensas vezes com uma esfregona no toutiço o que não o impediu de compor as Violetas Imperiais e o Esta noche me emborracho. E como ainda hoje eu disse ao cego, que concordou comigo, o que é que o Bach e o Mozart tinham, em matéria de queda para os pasodobles, que a gente os dois não tenhamos?
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"Livro de Crónicas"
crónica de António Lobo Antunes

4 comentários:

finalmentepaula disse...

LINDO!

...está bem abelha...

...eu é mais Dó, Ré, Mi, Fá...

genial, com J

intruso disse...

[fartei-me de rir...
lembrei-me de vós, saxofonistas...
lol

os livros de crónicas dele tornaram-se o meu livro de cabeceira]

Anónimo disse...

Esperança é o que tenho,
-ou quero ter?é o que penso sobre o Lobo Antunes estar a recuperar de uma cirugia e do cancro que lhe habita o corpo.
Nada melhor do que traduzir isto dizendo que estas crónicas são as melhores aspirinas que conheço. BÁLSAMOS!!

zoompac disse...

(Não sabia que estava doente)
...

Gosto tanto do que escreve e da forma como o faz...

Um dia, sem dar por isso, rasguei a página de uma revista que não era minha, com um conto seu...

Só me aprercebi quando olhei para a senhora ao meu lado e me preparava para lhe devolver a revista:
- Aiiiii desculpe... estava tão distraída... e gostei tanto deste artigo... se quiser compro-lhe a revista?!?!?...

Acabei por o perder lá por casa... mas prometo procurar :-) deve estar algures metido dentro de um livro.

Não será isto propriamente um comentário, visto que conto sempre uma história nova :-)

beijos,