segunda-feira, 16 de abril de 2007

adoro/detesto velórios

…familiares e amigos e colegas e conhecidos e desconhecidos e outros que não se sabe quem são ou porque vieram (nem os próprios)…
É vê-los chegar, condoídos e impecáveis, de gravata ou rendas, óculos escuros e palavras perfeitas.
(alguns trazem flores, outros não)

…tudo no seu lugar, irrepreensível (…e a capela tão bonita, tão bem arranjada)
Todos muito quietos, depois de abraços sentidos e beijos piedosos.
Todos calados e pensativos, de sobrolho franzido e mãos postas e braços mudos.
Todos de escuro; nem uma corzinha, nem um sorriso, nem um cabelo em desalinho
(só silêncio e murmúrios)

…palavra de honra; é que nem o morto destoa, impecável, na sua pose digna e severa, no seu melhor fatinho a cheirar a naftalina
(e o naperon tão branquinho)
…impecável.

E deixa-se o morto e a viúva e as beatas e as flores e as rezas…
(e a solidão de estar ali…)
E vai-se para a pastelaria do prédio em frente (snack-bar “O Paraíso”) onde não cabem mais que três mesas com três cadeiras cada e onde os bolos de arroz desmaiam na vitrine com ar de que estão ali há uma semana e onde há um empregado desdentado a quem se pede chá e bica (bem tiradinha, se faz favor…) e onde se come qualquer coisa para calar o estômago e onde uma televisão pregada ao tecto mostra os programas da tarde com os seus casos e cantores e misérias e aspiradores e viúvas … (realmente a televisão nunca dá nada de jeito) e onde à mesa, entre chávenas e guardanapos, se fala do mal-educado do morto, um sovina que até batia na mulher (toda a gente sabia) e se finge ter pena dele (que Deus o tenha e guarde) e da esposa (coitadinha) e da amante (a galdéria do 2º esquerdo) e do filho, que parece que afinal nem acabou o curso lá por Lisboa (…como o outro, era engenheiro sem o ser) e da vizinha e de toda a gente… e onde por fim, com a boca suja de migalhas, se vai dizendo “é assim, é a vida” e se conclui “é a vida” e se tenta não lembrar que um dia destes ainda nos acontece o mesmo; impecáveis e dignos, vestidos no melhor fatinho a cheirar a naftalina…
(impecável).

8 comentários:

finalmentepaula disse...

concordo totalmente.e acrescento nas palavras de josé gomes ferreira (um realmente "grande":

«Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...»

merdinhas disse...

as flores, sempre as flores....

Uma vez no cemitério judaico alguém cometeu a "indelicadeza" de pôr flores na campa. Foram empurradas para o lado, ignoradas e esquecidas enquanto o corpo baixava à terra embrulhado em linho.

de resto são as mesmas cenas...os mesmos bolos desmaiados...tudo.

intruso disse...

:(

pois.....

--- disse...

deixei de ir a velórios e a enterros... o último foi o da minha avó, e nunca mais!

(teatro de mascaras...)

Patricia Dias disse...

detesto velórios...

para mim um dos acontecimentos / tradições / costumes mais deprimentes que conheço.

Sendo eu tão distraída (ou pelo menos vivo com essa fama há muito tempo) acho curioso como apanhas tantos pormenores num ambiente deste. A mim só me apetece fugir (felizmente fui a muito poucos em toda a minha vida).

Ah, e fiquei sem saber o que gostas/detestas.

****

zoompac disse...

"os meus sentimentos"

Sempre tive vontade de rir em funerais sem nunca compreender exactamente o porquê desta necessidade de exorcizar a tristeza pela gargalhada. Conhecido é o meu sentido de humor inoportuno (sorrio).

Da mesma forma, nunca entendi o porquê de se oferecem sentimentos (como flores) nestes momentos. Quando comecei a reparar nesta expressão ("os meus sentimentos") como "beijo" de condolência, perguntei à minha mãe que sentimentos deveria oferecer. Ainda hoje acho divertido pensar nisso... (e mais uma vez, tenho vontade de rir e muito)

... na maioria das vezes, permaneço simplesmente em silêncio e não consigo dizer absolutamente nada... perco-me num caminho puramente interior, oscilando entre dor, saudade, lágrimas e sorrisos...

Por quanto tempo conseguiremos sofrer intensamente?

...

zoompac disse...

Estou a fazer comentários muito pessoais, não estou?

ai...

esqueço-me sempre que isto é um diário público...

:-)

beijinho

finalmentepaula disse...

só me lembrei agora...não vou a funerais, mas o último funeral a que fui foi por minha vontade, foi de uma senhora velhota, toda malandra, cheia de vida de quem gostava muito...mantive-me distante, não "ofereci" os sentimentos e, no final, assisti a uma cena que me fez recordar, entre muitas outras razões, porque não vou a funerais: muitas das pessoas andavam à volta a tentar reconhecer aqueles que já tinham morrido e que eles conheciam...assim como quem diz "olha este já foi...e aquele, e aquela, e aqueles... e agora esta.olha, venha o próximo..."